Manuscrito alemão, 1304-1340, codex manesse torneios, século XIV
Dentro dos antecedentes históricos dos torneios no contexto medieval europeu, procurou-se também na proposição do trabalho, estudar estes eventos e ressaltar alguns aspectos que se julgaram pertinentes com relação a sua ampla implicação; e foi de extrema importância, o aspecto condenatório exercido pela Igreja neste tipo de jogo militar e também o da organização e manutenção da ordem pública, pelas autoridades, para manter este tipo de evento sob controle. A partir das influências da Igreja e das nobrezas governantes, os torneios e justas, caracterizaram-se de formas diversas socialmente e politicamente na sociedade medieval européia.
Por muito tempo os torneios foram condenados pela Igreja e banidos por leis seculares. Observa-se que os torneios se desenvolveram muito nos séculos XII e XIII, e neste período, as regras da Igreja, foram rígidas. Eram contrárias a estes eventos, colocando restrições severas aos cavaleiros que participassem de torneios, pois estavam sujeitos a punições espirituais. Sua enorme popularidade, no entanto, enfraqueceu as imposições da Igreja e, por isso foram criadas novas leis seculares para tentar regular o combate. Diante disso, durante muitos anos, um cavaleiro que participasse dos torneios estaria desafiando Deus e o rei, criando um confronto que perdurou por longos anos e que contribuíram para a transformação sócio-cultural na sociedade medieval como argumenta Jean Flori:
“O favor imenso encontrado pelos torneios, apesar das proibições repetidas da Igreja, comprova que o exercício das armas não lhes parecia de forma alguma, por si só, maculado de pecado. Em compensação, a doutrina eclesiástica e a moda dos torneios, embora radicalmente opostas, contribuíram ambas fortemente para a definição da cavalaria e da ética cavalheiresca”.
A Igreja declarou sua oposição aos torneios logo quando eles surgiram. O Nono Decreto do Conselho foi criado em uma reunião eclesiástica em Clermont em 1130 e proibia a realização dos torneios e, em caso de morte de algum competidor durante um embate era proibido conceder perdão eclesiástico ao cavaleiro e, aos participantes dos mesmos, também seria negado o viaticum (perdão concedido a quem matou o oponente). A razão para criar essas proibições era simples: torneios tirariam a vida de cavaleiros e colocava suas almas em risco. O embate era perigoso e violento, o crime de homicídio era facilmente cometido, mesmo que sem intenção de matar. As colocações proibitivas faziam sentido, mas outros motivos, além da violência, como a ostentação do amor, o erotismo, característicos nos torneios medievais, e aparte da política eclesiástica, faziam com que a Igreja aumentasse sua oposição diante dos embates realizados nestes eventos, como argumenta Cardini:
“O penhor de amor ostentado em torneio é, juntamente com as armas pintadas no escudo, as sobrevestes e a gualdrapa do cavalo, o emblema característico do cavaleiro que participa os jogos militares. A tensão erótica, que pode ir até ao espasmo, é uma característica essencial deste tipo de atividade cavaleiresca e permite-nos entender por que motivo a Igreja, opondo-se a ela, pretendia propor um discurso ético e social muito mais profundo e complexo do que poderíamos imaginar, se nos limitássemos a avaliar essas proibições sob o ponto de vista redutivo de uma política eclesiástica destinada a limitar a violência e o derramamento de sangue”.
No decorrer do século XII, os combates já estavam bem estabelecidos e enraizados no cotidiano cavalheiresco. A autoridade da Igreja estava fraca para conseguir banir a prática dos jogos militares. Mas mesmo assim, a sua posição oficial permaneceu inalterada pelo menos 200 anos. No começo, o decreto do Conselho de Clermont, regulamentando as proibições, foi simplesmente repetido sucessivamente em outros conselhos.
Os romances de Chrétien de Troyes, século XII, que Cripps-Day salienta como provocativos ao poder da Igreja , surgiram apregoando os torneios como sendo parte central na vida dos cavaleiros. Era a forma de como os cavaleiros provavam a sua origem nobre, mostrando as suas proezas e sua habilidade; foi através dos torneios que eles atraíram a atenção e o amor das damas, foi aqui que eles despertaram as virtudes do cavaleiro como a coragem, a cortesia e generosidade. Diante disto, pressentindo um afastamento da nobreza cavalheiresca dos ensinamentos clericais , como cita Barber, e para tentar conter a proliferação dos torneios a Igreja tentou criar uma ideologia mais atraente aos cavaleiros, participantes dos jogos. O Papa Celestino III tomou a decisão de escrever, em 1193, aos bispos ingleses, uma carta em que proibia os torneios e encorajava os cavaleiros a participar das cruzadas na Terra Santa onde eles poderiam usar suas habilidades para se tornarem mais experientes e com isso beneficiariam seu corpo e alma.
Manuscrito do século XIV, autor desconhecido. Tournaments.
A última imposição formal de um papa ocorreu em 1312 com extrema rigidez e exigia que as proibições fossem aplicadas e observadas. Clemente V chamou todos os príncipes da Europa para que libertassem a Terra Tanta das mãos dos pagãos e proibiu os torneios e até mesmo as távolas redondas. Qualquer um que participasse de torneios seria excomungado e somente o papa poderia absolvê-lo e, caso o cavaleiro estivesse morto, estava automaticamente condenado. Havia aqueles que não concordavam com as regras do Papa, alegando insensatez, o que causou inúmeros atritos, gerados pelo fato do pontífice conclamar os cavaleiros para a Guerra Santa, mas ao mesmo tempo negava os jogos militares, alegando grande derramamento de sangue nesse tipo de competição.
Quando João XXII chegou ao trono papal em Avignon em 1316, uma de suas prioridades foi remover as proibições da igreja com relação aos torneios. E em 11 dias como Papa, ele criou o Quia In Futurorum que finalmente admitia que a Igreja houvesse falhado em suas tentativas de banir os espetáculos. Após criar seus próprios argumentos ele confessou que seus predecessores cometeram um erro ao proibir os torneios, pois entendia que os cavaleiros não queriam participar das Cruzadas a menos que tivessem também o direito de participar dos torneios e justas. Estes argumentos na verdade era uma forma de esconder o verdadeiro motivo pelo qual o Papa removeu as proibições; o motivo real era que os filhos de Felipe, o Justo, da França fizeram grande pressão política sobre ele para que liberasse os torneios. A atitude oficial foi reconhecida por todos os grandes da Igreja no período de 1316.
As histórias em torno dos torneios eram as mais diversas em virtude da grande polêmica que causava. Graças as crônicas de Walter Map , na década de 1190 e de Thomas Chantimpré , 1201-1270, podemos através delas notar que quando os argumentos da Igreja falhavam os cronistas se encarregavam de incentivar os seus horrores. Os autores criavam lendas, (principalmente as de mortes trágicas) como a de um cavaleiro desconhecido que teria morrido no momento em que ia vencer uma feroz batalha em um torneio; também relatam a morte de cavaleiros, sobre espíritos que sem perdão ficavam vagando sem ter o descanso eterno e atormentando aqueles que ousassem participar de torneios. Dentro das histórias relatavam a inclusão dos demônios que voavam sobre os campos dos torneios, como um presságio do número de fatalidades que estavam prestes a ocorrer; visões de uma viúva sobre a terrível morte de seu esposo em um torneio e que seu fantasma estava sofrendo no inferno.
Porém existiam também as histórias de milagres que favoreciam os cavaleiros, como nos relata Larry Benson, a partir da tradução de manuscritos à época.
“Uma história de milagre muito popular (a primeira que apareceu no final do século XIII) a respeito dos torneios, descreve como um cavaleiro que sempre acenava para a população local antes de se dirigir a algum torneio, e que um dia ele teria chegado atrasado a esse evento. Por conseguinte em seu lugar um anjo (algumas versões diziam que era a Virgem Maria) teria lutado em seu lugar e capturado diversos oponentes; alguns consideraram esta história uma blasfêmia, passível de punição severa”.
Até Cristo é descrito como um cavaleiro que teria lutado em Jerusalém, vestindo a armadura contra o diabo, seguindo o relato das traduções de Benson:
“Sublime e majestoso, com sua armadura prateada e reluzente, a frente dos cavaleiros, o Filho de Deus, brandindo sua espada, conclama a todos os cristãos para a libertação da Terra Prometida na luta contra satanás.. O Cristo homem se faz presente diante da insensatez do mal que reina na cidade sagrada”.
No século XIV, a Igreja decidiu que não haveria mais problemas em permitir que os torneios ocorressem desde que os combates transcorressem com espírito de se exercitarem militarmente e dentro de um posicionamento cortês e fidalgo. Era aceitável que os cavaleiros participassem dos torneios com o objetivo de praticar e se exercitar no uso das armas, com a intenção de serem melhores soldados para posteriormente oferecerem seus serviços às Cruzadas.
A Igreja via os torneios como um risco à salvação do homem, e as autoridades seculares viam os torneios como um risco à ordem pública. Um grupo de homens armados era um risco potencial à ordem pública e, é por isso que os reis da Inglaterra e França atentaram e criaram certas restrições nos séculos XII e XIII como forma de controlar possíveis desordens públicas que poderiam ocorrer em virtude da presença de homens armados nos vilarejos e cidades. Era muito comum a utilização dos torneios para realizar conspirações ou assassinatos. A lei Statuta Armorum criada em 1292, por Eduardo II, rei da Inglaterra, (1307-1327), foi uma forma legal de prevenir que os torneios deturpassem a ordem pública. Estas regras não eram passadas aos participantes diretos, os cavaleiros, e sim para os assistentes que geralmente, conforme a nobreza eram os causadores de desordem. Em outras regiões, principalmente no norte da Europa, foram tomadas precauções especiais, principalmente a partir do século XIV, ou seja; os cavaleiros eram recebidos nas cidades somente se a declaração dos conselhos municipais informasse que eles haviam se comportado bem e pago as suas contas nos centros onde eram realizados os jogos. Posteriormente as cidades, durante os torneios, convocaram arqueiros como guardas caso ocorressem distúrbios.
Desde meados do século XV a Cristandade Ocidental se vê em crise e os torneios no aspecto religioso e espiritual, sofreram transformações. Constantinopla é tomada em 1453, pelo sultão turco Maomé II; os reis cristãos, politicamente divididos e o papado romano corrompido são impotentes para reagir. A grande peste (Peste Negra) e a Guerra dos Cem Anos deixaram um rastro de destruição apocalíptico. Nesse ambiente, muitos pensadores se tornaram audaciosos na crítica à visão de mundo tradicional e aos valores perpetuados pela teologia medieval, como cita Minois:
“O Humanismo triunfante e sua virtude enervante (no sentido etimológico) ganha as mais altas esferas do clero, inclusive papas. As preocupações intelectuais se sobrepõem às exigências espirituais e dogmáticas, o saber sobre o agir, as veleidades sobre as decisões. O imenso apetite de cultura inverte os limites impostos pela fé dos séculos precedentes. O espírito se abre a todos os domínios do conhecimento humano; os exclusivos recuam. O mundo dos intelectuais começa a se instalar no terreno, com uma retomada de admiração pelas antigas obras pagãs, um desejo de usufruir os bens presentes e um otimismo sorridente para o futuro, que os engenheiros já povoam de máquinas fantásticas que tornarão a vida mais agradável. O céu não é esquecido, por certo, mas, por enquanto, não há pressa”.
Diante destas transformações, principalmente ao que concerne à admiração das obras literárias pagãs, em toda a Europa, os torneios, também sofreram influências e modificações nos seus aspectos sociais, políticos e religiosos, e se desenvolveram em duas formas bem diferentes. De um lado, torneios em grande escala se tornaram muito caros. Cercados por um cenário elaborado e programas dramáticos (teatrais), eles restringiam-se, somente aos reinos ricos, como a Provença e a Borgonha, que tinham experiência e recursos para organizá-los. Enquanto, por outro lado, os desafios individuais (duelos), mais modestos, ganharam grande popularidade, como uma das poucas formas para um cavaleiro adquirir fama e deixar sua marca na história. Nestes desafios, a justa, (lança contra lança) que tem a sua grande difusão na corte de Borgonha e posteriormente se alastra principalmente para o sul da França no século XV, leva o mais alto grau de sofisticação à prática do torneio. Impregnados de romances, os organizadores reconstituem a sua atmosfera ao redor de justas de tema.
“Uma das mais célebres justas de tema, foi a da Árvore Carlos Magno, realizada em 1443 durante seis semanas por Pierre de Bauffremont, senhor de Charny, e outros doze cavaleiros e escudeiros borgonheses. Com um grande número de espectadores, as arenas do torneio foram acrescentadas enormes tendas, enquanto que três castelos foram escolhidos para hospedar os participantes, onde se realizaram festas suntuosas durantes dois meses”.
Cavaleiros em Justas, Árvore Carlos Magno Século XV, (1443). Fonte: BNF, MS. 13467 FL. 29, Paris, França.
Ainda no âmbito dos duelos individuais, o gênero mêlée (luta corpo a corpo, preferencialmente realizada no chão, sem os cavalos), se tornou raro e, um modelo distinto de embate surgiu como pas d’armes , em que o indivíduo ou equipe, proclamavam sua intenção de defender um determinado local contra todos os possíveis oponentes. Somente na Provença e na Borgonha, provavelmente, se poderia, nesta época, vislumbrar as modalidades justas, mêlée, e pas d’armes inclusas em um único evento de torneio No século XV não existem dúvidas de que todos os olhos estavam atentos aos cavaleiros, que poderiam ter sua grandiosidade encontrada na literatura da época, que o Rei René I muito bem registra no seu Livro dos Torneios, foco dessa pesquisa. As implicações sociais e políticas a partir do século XV sofreram alterações substanciais no que tange a organização dos torneios e aos desafios provocados pela nobreza.
Paulo Edmundo Vieira Marques