Monthly Archives: April 2014

A Espada – A Força do Cavaleiro

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A espada na Idade Média tratava-se de uma palavra divina, símbolo de bravura e poder. Marca de uma condição nobre e militar, a espada é a ordenadora da Criação, destrói a ignorância e o mal, mantém a justiça e a paz, permitindo ao Cavaleiro captar os conhecimentos e libertar-se das paixões. Imagem ígnea, axial, fazendo do Cavaleiro um “herói solitário” a exemplo de Cristo, a arma é o elo vertical entre o Céu e a Terra, tal com o Cavaleiro, canais por onde comunicam o Princípio e os homens.

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Rei Ricardo I, Coração de Leão, Estátua em frente ao Parlamento, Londres. UK.

Cruz Luminosa, a espada é também a imagem da cruz, nova Árvore do Mundo sobre a qual, como Odin, foi içado o Verbo Incarnado, vindo para vencer a morte e resgatar os pecados do mundo. Portador da espada-cruz, o Cavaleiro, é a imagem viva de Cristo, cujo regresso à Terra prepara. Nesta base, os textos medievais não hesitam em fazer da espada um ser vivo dotado de certa vida, mas “vida” ligada à a do seu portador, e de um nome, o qual é uma coisa viva e possui um poder do criador quando pronunciado, tal como Joyeuse (a espada de Carlos Magno) Excalibur (Arthur), Hauteclair (Oliveiros), Durandal (Rolando), etc. A espada tem uma “alma” simultanemaente distinta e comum à do Cavaleiro de que recebe força e sopro vital (anima, dá-lhe atitude). Ao brandi-la, o Cavaleiro prolonga a sua própria alma sensitiva pela alma vegetativa da arma, permitindo-lhe atingir, por analogia, o Principio Primeiro, por conseguinte pôr em contato o Céu e a Terra.

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Master of Ghent, Pintores Flamengos. Início do Século XVI.

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Retrato de Felipe, o Belo. Portrait of Philippe le Beau 1478-1506; revers: Saint Liévin.

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Warrior Giorgion with its Equerry. Cavazzola

Paulo Edmundo Vieira Marques

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As Ordens Monástico Militares

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Estas ordens, nascidas na Terra Santa (Templária, Teutônica, Hospitalária, etc.) foram a realização do sonho medieval de unir a fé e a guerra justa. Mas, pela sua própria natureza, provocaram uma ruptura grave no seio da Cavalaria secular. Ao retirar do século Cavaleiros de alta envergadura espiritual e temporal, muita vezes originários de grandes linhagens, e votando-os ao celibato, estas ordens quebraram a unidade espiritual e física da Cavalaria secular, privando-a dos seus elementos mais dinâmicos susceptíveis de a manter, no seio do século, num quadro estritamente cristão. Sem as suas referências a Cavalaria mundaniza-se (Séculos XIV-XV) e preocupa-se menos com a fé e o respeito pelas leis evangélicas: ao mesmo tempo que a fé, forte na Idade Média, começa a retirar-se das consciências, a partir do século XV. A dessacralização do poder temporal e a Reforma, que quebra a unidade da Cristandade, não fizeram mais do que agravar seu estado de coisas: daí para frente o Cavaleiro, o guerreiro em geral, forjam uma moral militar que já não tem a defesa de Deus e da Igreja como fim exclusivo, mas de um estado e do seu príncipe, o qual é, em muitos casos, o chefe de uma espiritualidade singular, um reino, um príncipe, uma fé.

Nota-se outra ruptura: se outrora o Cavaleiro foi o homem de todas as causas justas, membro de uma confraria transnacional, o Cavaleiro é um agente executivo votado de corpo e alma à sua ordem, à qual deve fidelidade. O exemplo mais completo é o Templário que deve ser, como estipula um documento do século XIII, “paladino do bem e obediente às regras, casas e interesses da Santa Ordem” antes de o ser para com os “poderes exteriores à casa e outros”, inclusive o Papado.

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A Cruzada é a concretização da teologia cristã da guerra, mas também da dupla vontade da Igreja escapar à dominação da nobreza laico-guerreira e de reforçar o centralismo pontificial visando o dominium mundi em detrimento dos poderes seculares. No que diz respeito a Cavalaria, a Cruzada permite resolver a contradição que atormentava muitos Cavaleiros, quanto à conciliação entre o emprego da força guerreira e a observância dos Evangelhos. Daí em diante, depois de Urbano II e São Bernardo, o Cavaleiro secular podia unir, sem complexo, a via da espada à da fé; união que se tornou mesmo um dever para todo o verdadeiro Cavaleiro, fazendo dele um mile Christ. Mas se a cruzada assegurava uma continuidade da via cavaleiresca, também introduziu uma série de conseqüências para A Cavalaria.

A primeira foi a ruptura entre o espiritual e o temporal, grave por tocar uma instituição sacralizada, é certo mas que ficava, apesar de tudo, no domínio espiritual. A segunda consequência, mais contingente mas não menos importante, prende-se com as rivalidades que a Cruzada gerou entre os Cavaleiros, sobretudo entre os de altas linhagens, para a conquista e a defesa das conquistas territoriais efetuadas.

Em muitas ocasiões as finalidades iniciais das Cruzadas eclipsaram em proveito de interesses temporais, mesmo no seio das ordens, exacerbando as paixões políticas entre os condados, ducados, senhorias, etc. Não eram raras as lutas armadas entre senhores, que não hesitavam em aliar-se ao infiel logo que as cirscunstâncias o exigiam. A terceira consequência é que a Cruzada ocasionou uma perda importante da substância humana da cavalaria, uma vez que se avalia em mais de um terço os Cavaleiros mortos na Terra Santa, privando a cavalaria dos seus elementos mais eficazes. Esta sangria explica em parte o esgotamento sociológico da Cavalaria, tornando-a incapaz de se opor às armadilhas dos poderes seculares e a orientação negativa que tomou a partir do século XIV.

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Paulo Edmundo Vieira Marques

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O Mundo Cavalheiresco Francês e Provençal no Século XV: A Nova Cavalaria

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 Livro de René d’Anjou, Livre des Tournois, século XV. Provenca, França. BNF

Cavaleiros emplumados que cruzam as lanças, enquanto arautos[1] soam as longas trombetas; damas com altos penteados que contemplam o combate de uma varanda onde tremulam bandeiras – mas é esta a representação mais popular da vida medieval no seu aspecto cavalheiresco? Possivelmente não, tal quadro não poderá simbolizar a Idade Média. Estes elementos são tirados das miniaturas e iluminuras dos séculos XIV e principalmente a do século XV, e apenas para esta época constituem em certa medida uma representação valiosa. Trata-se, ainda de um episódio de caráter excepcional que não engloba senão um grupo social extremamente reduzido, uma aristocracia, que está longe de confundir-se com o conjunto da classe feudal. No século XV é grande o contraste entre a exaltação das virtudes cavalheirescas e a realidade vigente, em que prevalece o perjúrio e a violência, pois nascida de circunstâncias espirituais e temporais, a Cavalaria manteve-se viva e dominante por muito tempo em virtude de que os fatos que exigiram a sua criação mantiveram o seu peso na sociedade medieval. Ela foi a solução empírica dada à questão posta, simultaneamente, pela lenta evolução das entidades territoriais, de quem os cavaleiros eram os garantidores, e pela delicada conciliação entre a força guerreira e o amor evangélico. Mas assim que a autoridade espiritual e o poder temporal estabeleceram um consenso, a utilidade da Cavalaria diminuiu e o cavaleiro deixou de ser o laço de uma sociedade sacralizada para ser o soldado de um Estado Nacional incorporado por um príncipe profano. O próprio título, acompanhado da nobilitação, tornou-se uma qualificação honorífica destinada a recompensar os plebeus por serviços prestados à coroa.

Na Provença nota-se claramente, em virtude de exemplos advindos das terras flamengas e germanas, uma transformação na organização dos torneios e justas. Sua elaboração é voltada para a magnificência, ao esplendoroso, ao espetáculo, influenciadas tanto pelas Novelas de Cavalaria[2] como a Literatura do Amor Cortês[3], apreciando as duas formas indistintamente.. Nesta região contempla-se o que de mais suntuoso existe na nobreza. Os desafios, como uma necessidade, tem que ser feitos para chamar a atenção não somente dos nobres que deles participam, mas também para a nobreza das regiões, tanto faz, próximas ou longínquas. È preciso mostrar e revelar a suntuosidade de tal evento, como querendo demonstrar que a corte responsável pela efetivação de um torneio espetacular, é merecedora de todos os elogios diante dos reinos da Europa. As cortes do sul da França já se preparavam para realizar os torneios de uma forma diferente, como se prenunciando o declínio do tradicional.

Na França, o sentimento de honra é comum a toda a classe feudal, mas dentro dela, aqueles que têm efetivamente direito ao título de cavaleiro constituem, no princípio do século XV, apenas uma restrita minoria. Os torneios na França anteriormente, eram para exercitar os cavaleiros para futuras batalhas, mas na Baixa Idade Média, mais do que desafios individuais, as interferências entre o anseio de “façanha” e as necessidades da tática são perigosas para o resultado da guerra. As três grandes derrotas francesas na Guerra dos Cem Anos deveram-se, em grande parte, à indisciplina da cavalaria feudal, impaciente por travar combate, e o desejo de encontrar-se, cada um, na primeira fila. Ceder a certas regras de prudência tática surgia como uma forma de covardia. A Cavalaria resiste.  Até a metade do século XV, apesar das mudanças dos tempos onde a guerra requer outras implicações e estratégias, a cavalaria, adaptou-se as conjunturas, como Huizinga relata:

“A sede de honras e de glória tão característica do homem do Renascimento não difere muito da ambição cavalheiresca dos tempos anteriores, e é de origem francesa. Simplesmente libertou-se da sua forma medieval e revestiu-se de um garbo mais clássico. (…) A conquista da glória e das honras vai a par com o culto do herói, o que pode significar o prenúncio do Renascimento. Se a cavalaria tinha de ceder à estratégia e à tática, nem por isso deixava de conservar importância no aparato exterior da guerra. Um exército do século XV, com a sua esplêndida exibição de ricos ornamentos e pompa solene, oferecia ainda o espetáculo de um torneio de glória e honra. A quantidade de bandeiras e pendões, a variedade de brasões heráldicos, o som dos clarins, os pregões de guerra ressoando durante o dia inteiro, tudo isto, com o próprio traje militar e as cerimônias de armar cavaleiros antes da batalha, tendia à guerra a aparência de um desporto nobre”. [4]

 Do início do século XV até meados de 1440, a Cavalaria reluta às transformações, mas agora participando das batalhas como uma complementação, ainda importante e muito contributiva, e os torneios e justas continuam nos cursos das operações militares, veiculando sua ética, divulgando-a na própria guerra, como cita Jean Flori:

“No fim da Idade Média, apesar do interesse novo que se tem pelas tropas de infantaria, pelos besteiros genoveses e pelos arqueiros gauleses armados com o grande arco, é fácil observar que nenhuma grande batalha foi vencida sem a contribuição notável da cavalaria. Sua função militar e mais ainda seu prestígio ideológico estão intactos e até reforçados. È somente com o triunfo da artilharia de pólvora e mais ainda da artilharia manual que ela declinará nesses dois planos”. [5]

 Mas a partir de, aproximadamente 1440, na França e na Provença, com o cuidado dos soberanos em melhor controlar o seu território e reforçar os seus poderes político-sociais levaram-nos a cessar as guerras privadas entre senhores. Os príncipes asseguram o monopólio da força, portanto da guerra.  Despojado do seu papel de guerreiro individual, também o cavaleiro desejoso de continuar a combater, a guerrear é obrigado a submeter-se à autoridade central e a servir em exércitos regulares arregimentados pelo Estado, cujo exemplo, foram as Companhias de Ordenança criadas por Carlos VII, suporte de um exército permanente e nacional. Diante disto, resta para o cavaleiro, um papel de polícia e de oficial de justiça, visando manter a paz desejada pelo príncipe, fazendo aplicar e respeitar as suas decisões políticas.  Tal transformação teve como conseqüência, o desenvolvimento extremo dos substitutos do combate que eram as justas e os torneios, fazendo do cavaleiro um profissional admirado por uma sociedade de salão, glamourosa, onde reina a cortesia. A paz interna favorece o desenvolvimento de uma elite urbana na qual se apóia o príncipe, a burguesia, especialista na arte de gerir um orçamento e de manipular os homens. Durante a Idade Média a burguesia progride lentamente até o nível da Cavalaria, para ultrapassá-la definitivamente a partir do século XVI. A via das armas não é a única a conferir prestígio e a servir um príncipe. O serviço civil, sobretudo na justiça e nas finanças, abre uma outra via aos ambiciosos, uma via menos perigosa, mais eficaz e mais útil ao rei e ao burguês. A promoção deste implica um enfraquecimento político-social da Cavalaria feudal, que tende para um empobrecimento acrescido. Daí a prática, desde o final do século XIV, de vender os feudos à burgueses ricos. O resultado foi o regresso de numerosos cavaleiros e da sua descendência ao nível do povo das cidades e dos campos. Argumentando sobre este quadro da cavalaria, Emmanuel Bourassin cita:

“Em França, o poder centralizador, apoiado em recursos previamente previstos e num sólido exército, fizera progredir o reino na via da ordem e da pacificação. A ordem monárquica veio substituir a ordem feudal, pelo menos no domínio real. Os cavaleiros franceses, submetidos, reentrando na ordem, aceitavam a disciplina, graças a um salário regular pago pelos tesoureiros reais. A guerra anglo-francesa deixara-os arruinados; para conseguirem pagar os seus próprios resgates ou dos filhos, tiveram de hipotecar os seus feudos aos banqueiros da burguesia. Os nobres sentiam-se muito felizes por receberem o pão das mãos reais; disputava-se a entrada nas companhias de ordenança. Apesar de tudo isso, os cavaleiros não renunciavam ao seu orgulho. Os cavaleiros de armadura que vamos encontrar nas guerras de Itália serão dignos dos seus antepassados pela coragem e pela abnegação, mas enquadrados num exército real fortemente estruturado”. [6]

 [1] Os repórteres medievais, cronistas, peritos em direito de armas e em cerimônias, os oficiais de armas dos séculos XIV e XV que são bem definidos por Philippe Contamine, como “especialistas da comunicação”.

 [2] Narrativas de aventuras guerreiras que exaltam a valentia, a fidelidade ao soberano e a defesa dos fracos. Celebram também uma concepção mais realista do amor do que a literatura cortês. São exemplos de novela centrada em proezas militares as lendas celtas e bretãs do ciclo arturiano, relatando as peripécias do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda; os poemas ingleses Beowulf e Sir Gawain e o Cavaleiro Verde; os espanhóis, Amadis de Gaula e Los cantares del mio Cid; os franceses, O romance de Alexandre e Lancelot, de Chrétien de Troyes; ou o russo Canto da batalha de Ígor. As várias versões da lenda de Tristão e Isolda, entre as quais a do alemão Gottfried von Strassburg, são uma da maiores contribuições para a novela de temática amorosa.

 [3] Literatura cortês, celebrando formas idealizadas de amor, em geral platônico e inatingível, surge, a partir do século XI, na poesia provençal, do sul da França, com Arnaud Daniel, Guilherme de Aquitânia, Marcabru, Peyre Cardenal ou Bernard de Ventadour. Da França se irradia para toda a Europa, através de trovadores como o alemão Walther von der Vogelweide, ou os reis dom Afonso X, o Sábio, da Espanha, e Dom Dinis, de Portugal. Sua manifestação mais importante é O Romance da Rosa, dos franceses Guillaume de Lorris e Jean de Meung.

[4] HUIZINGA, Johan, op. cit. p. 72 e 104.

 [5] FLORI, Jean, op. cit. p. 108.

 [6] BOURASSIN, Emmanuel. Os Cavaleiros, Esplendor e Crepúsculo, Ed. Europa-América, Mem Martins, Portugal, 2003. p.147.

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Dresden manuscript of Rene de Anjou on Tournaments, século XV.

A Cavalaria, no sentido restrito da palavra, no decorrer do século XV, tende apenas a constituir uma elite reduzida da nobreza feudal; e esta redução faz-se acompanhar de um crescente requinte dos sentimentos e práticas cavalheirescas, como se pode constatar nos reinos da Provença e Borgonha, onde a magnitude dos eventos relacionados a Cavalaria  adquirem tons de exagero. As grandes Ordens de Cavalaria de tempos atrás – Templários, Hospitalários, etc., tinham sido criadas com vista à ação; pode-se dizer que é essencialmente atendendo à exibição, que nascem as numerosas novas ordens. Não há príncipe ou grande senhor que não alimente a ambição de se tornar ilustre, criando uma nova ordem.

pesar da implantação de inúmeras Ordens de Cavalaria[1] no decorrer do século XV, é o sonho de glória e de amor que forma a base do sentimento cavalheiresco e, encontra a sua manifestação mais expressiva nas justas ou torneios que, aos olhos dos cronistas, constituem os grandes feitos históricos do tempo. E dentro deste contexto um elemento significativo na nova Cavalaria, não só nela, mas em todos os setores, é o papel que nela ocupa a mulher, como inspiradora das virtudes cavalheirescas, como salienta Georges Duby:

“será preciso, aguardar o final da Idade Média (justamente quando da ascensão da burguesia) para que a voz feminina se faça ouvir nas fontes históricas acessíveis”. [2]

È total a ausência de um motivo razoável para realizar uma justa cavalheiresca na sua mais pura forma. Os adversários não têm mais justificativas para se defrontarem do que o desejo de fazer brilhar o seu valor e ao mesmo tempo de testemunhar a sua inteira submissão à dama que lhe inspira a coragem. E em virtude disto que as autoridades se mostram hostis a estas demonstrações em que se esbanjam virtudes heróicas, que poderiam encontrar melhor emprego nos campos de batalha.

Interessante também observar, principalmente na Provença, a partir de 1450, encontros cavalheirescos, (justas), a encenação que rodeia os mesmos parece ter mais importância que os próprios embates. A diferença da indumentária e das armaduras do cavaleiro nesta época para as usadas nos séculos XII e XIII, sem dúvida demonstra a transição sofrida pela Cavalaria, principalmente àqueles que torneios e justas participavam no século XV. Retirado das páginas do Livro dos Torneios, de René d”Anjou, podemos constatar a suntuosidade de tais vestes, observemos:

o cavaleiro tinha três trajes de gala; um de damasco carmesin bordado com prata e debruado com pele de marta zibelina, o segundo de cetim azul bordado com losangos de ouro, e terceiro, finalmente, de damasco negro tecido com fio de ouro, e com guarnições de arminho e bordas de plumas de avestruz, verdes, violetas e cinzentas; em honra da dama, o cavaleiro, às vezes, usava a manga de honra, espécie de faixa que prende ao ombro até o chão. Sobre o traje de cores vivas, vestiam a armadura de torneio, cinzelada e incrustada de ouro e prata. È da Alemanha que se mandam vir as armaduras mais famosas, mas vendem-se na França, principalmente Marselha, boas imitações.[3]

 Por imposição do requinte, a vida da Cavalaria acabou por ser apenas um jogo de sociedade de grande aparato, sem o mínimo contato com a realidade. Realidade esta que se mostra cada vez mais hostil à cavalaria no próprio terreno em que deveria demonstrar as suas virtudes.

O mundo cavalheiresco do século XV transformou-se; as cotas de malha aos poucos são substituídas por armaduras que, embora mais eficientes, eram também muito pesadas; era difícil encontrar cavalos capazes de carregar esse peso todo, e seu custo, somado ao da cara armadura nova, era quase proibitivo. Os novos exércitos da Europa eram formados por infantes profissionais altamente treinados e bem armados, capazes de permanecer em campo de batalha, prontos para lutar, durante uma temporada inteira de campanha.

Esta nova Cavalaria, digamos como a de transição, é muito bem representada por Jean de Bueil, que combateu sob a bandeira de Joana d’Arc, tomou parte da Praguerie e morreu em 1477, no romance intitulado Le Jouvencel que em certo trecho relata como via o cavaleiro àquela época:

 “(…) verdadeiro oficial, formado na prática quotidiana da guerra, tendo subido os postos da carreira militar graça às qualidades de prudência tática, cavalheiresco sem dúvida no sentido mais geral desta palavra, pela sua generosidade e cortesia para com o adversário vencido, mas não tendo senão desprezo para o heroísmo exagerado, que sacrifica a sorte de uma companhia ou de um exército ao desejo vão da glória pessoal”. [4]

Le Jouvencel é já um chefe militar moderno, um cavaleiro integrado às novas exigências das guerras e batalhas. Um novo contexto cavalheiresco se insere na Baixa Idade Média, e dentro deste quadro, os torneios também sofrerão mudanças tornando-se desafios de cunho espetacular.

As controvérsias dos historiadores a respeito do declínio ou não da cavalaria no século XV nos remete a uma conclusão indispensável, independente de opiniões, e ela pode ser resumida por Franco Cardini que diz:

 “(…) as instituições cavalheirescas e a cultura que, entre o século o século XI e o século XVIII (e talvez para além deles) lhes conferiu prestígio, revelaram-se um dos motores mais poderosos do processo de individualização do homem ocidental, aquilo a que Norbert Elias chamou processo de civilização. É um elemento importante, que não se pode desconhecer e ao qual nós, contemporâneos, não podemos de maneira nenhuma renunciar”. [5]

 

E o mundo cavalheiresco na França e na Provença no século XV, apesar das influências inglesas, alemãs e flamengas[6], é um contexto que de maneira alguma podemos renunciar, em virtude de suas particularidades e implicações no âmbito da história da Cavalaria medieval.

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 Apresentação dos cavaleiros para uma justa, iluminura séc. XV. Bruges, Flandres. Fonte: Bibliothéque Prince Albert, Bruxelas, Bélgica.

  [1] São fundadas por reis ou príncipes e aparecem a partir do segundo terço do séc. XIV. Associações firmadas sob juramento, muitas vezes fundadas por um motivo religioso e podem dispor de uma influência política no fim da Idade Média. As principais foram: A Ordem dos Cavaleiros do Tosão de Ouro, Felipe, o Bom, Borgonha, Ordem do Dragão, Hungria, Ordem da Águia, Alemanha, Ordem de Santo Huberto, duque Juliers, Ordem de São Jerônimo, Frederico II, da Saxônia e a Ordem de São Miguel, fundada por Luis XI, 1471, dentre outras. Mas a Ordem concorrente mais forte aos duques da Borgonha era a de René d’Anjou a Ordem do Crescente, fundada em 1448.

 [2] DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens. São Paulo, Companhia das Letras, 1989 p. 95.

[3]  D’ANJOU, René. Traité de la forme et devis comme on fait um tournoi, Provence, (1455-1460). Fonte: BNF. Biblithéque Nationale France. 2695, FL. 08.

 [4] Trecho traduzido do original tendo como fonte Bibliothèque Nationale de France, BNF Paris. Doc. 3312. Fla.06.

[5] LE GOFF, Jacques Org, In:  CARDINI, Franco, op. cit. p. 78.

 [6] Os torneios franceses e provençais, a partir do século XV, sofreram inúmeras influências das regiões inglesas, alemãs e flamengas, principalmente no que concerne a elaboração e organização de um torneio. Notificando-se mais pelo aspecto suntuoso e luxuoso. Da região da Flandres vieram os principais exemplos que posteriormente seriam adotados pela corte de René d’Anjou na Provença.

 Paulo Edmundo Vieira Marques

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