Relíquias ou Relicários Medievais – “Os Restos dos Santos”

Relicário de Limoges, França. 1170. Tesouro do British Museum, Londres.

Na tradição cristã quando um santo falece seus restos ou objetos pessoais são depositados em algum lugar sagrado, geralmente em uma igreja. Estes restos de santos e mártires são guardados em cofres, conhecidos como relicários. Estes cofres são de grande valor simbólico, pois lembram um personagem histórico que se destaca por sua santidade e sua vida exemplar como cristão.

Relíquias ou relicários são os “restos” dos santos; seus despojos, como também os objetos que lhes pertenceram, postos em contato com as suas ossadas ou a sua tumba, e os instrumentos da Paixão. As virtudes das relíquias não dependiam de suas dimensões. Segundo Vitrício De Rouen (final do século IV), a mais ínfima partícula preservada do santo bastava para atestá-lo. Manter em sua posse relíquias de santos renomados era sinal de prestígio e, por isso, motivo de roubos, fictícios ou reais. Na Idade Média, no seu início, começaram a ser levantadas as principais catedrais católicas do mundo, cuja construção era financiada por donativos da comunidade. Nesse contexto, a capacidades dos templos de atrair fiéis e peregrinos dispostos a ceder generosas contribuições estava diretamente relacionada à quantidade de relíquias expostas para veneração.

Foram muitos os casos de relíquias que percorreram grandes distâncias, dos locais onde os santos haviam morrido até as suas novas comunidades adotivas, o que era tratado como expressão da vontade do próprio santo. Já no século I, o corpo de São Tiago aportou milagrosamente nas costas da Galícia em um barco sem leme, e, depois disso, orientou dois touros indomáveis até levá-los em uma carreta ao local onde foi construída uma igreja em sua homenagem, em Compostela. O corpo de São Marcos foi levado, por mercadores, de Alexandria para Veneza em 468, e, como prova de que estava indo de bom grado para a sua nova moradia, danificou o navio onde viajava um incrédulo que duvidara ser aquele o corpo do santo. Evidentemente, se o santo não desejasse ser transportado, jamais teria permitido aos homens movê-lo de seu sepulcro original. O corpo de Santo Agostinho teve de deixar a Sardenha, que estava despovoada pelos sarracenos, rumo a Pávia. Encontrando-se em Gênova, Santo Agostinho recusou-se a partir até que obteve do rei a promessa de que, caso o santo se deixasse levar construiria naquele lugar uma igreja em seu nome. O mesmo aconteceria na cidade vizinha de Casal. Como o rei viu que esse procedimento agradava ao santo, ordenou que em todos os locais onde o santo pernoitasse se construísse uma igreja da mesma invocação.

Sapato Relicário, 1350-1400, França ou Suiça.
Cenas da lenda de Santa Margarida de Antioquia são usadas neste caso para um relicário na forma de um pé. De acordo com sua lenda, Santa Margarida foi engolida por um dragão, mas, fortuitamente, ela estava carregando uma cruz que fez a barriga do dragão se abrir e o santo ser libertado. Santa Margarida foi uma das catorze Santa Auxiliadoras e padroeira do parto, invocada por mulheres para proteção durante o parto.

Havia gente especializada no tráfico de relíquias. Foi o caso do diácono Deusdona, pilhador das catacumbas. A translação de relíquias exigia, porém, o acordo do príncipe ou de uma assembleia de bispos. A cerimônia era celebrada com fausto, e as relíquias eram veneradas ao longo de todo o trajeto. O depósito de relíquias nos altares, a translação dos santos às igrejas e sua instalação sob o altar trouxeram importantes transformações arquiteturais (elevação do coro, construção de uma cripta) e sociais (pela inumação ad Sanctos, os mortos adquiriam seus direitos entre os vivos).

Crucificação e Cristo em Majestade. 1180-1190, Limoges, França.

A tomada de Constantinopla em 1204 renovou o estoque de relíquias no Ocidente. “Santas Capelas” como a de Paris, vide o meu artigo sobre Saint Chapelle neste mesmo site, abrigando a Coroa de Espinhos (cuja consagração data de 1248), foram erigidas. De início, o relicário constituía-se de um simples cofre, deram-lhe também a forma do membro conservado e, às vezes, da estátua toda do santo.

Mais tardiamente, pequenas janelas abertas nos relicários permitiam aos fiéis entrever os despojos santificados, expostos por ocasião das grandes cerimônias.

O IV Concílio de Latrão, em 1215, decidiu que a veneração de novas relíquias dependeria do acordo prévio do papa. A medida não impediu os muitos abusos, denunciados por Calvino em um panfleto.

Relicário de St. Taurin, Evreux, França, século XIII

As curas, as emanações maravilhosas e suntuosas, os traslados milagrosos e misteriosos a incorruptibilidade eram as provas de que os santos estavam privando da companhia de Cristo, de que suas relíquias eram materiais, artefatos divinos que rompiam as barreiras do tempo e do espaço. Justamente por serem investidas de enormes poderes e carisma, as relíquias sagradas estiveram no centro das disputas religiosas na Europa medieval e no início da Idade Moderna.

Relicário de Liga de Cobre, encontrado na França, de 1250. British Museum.

 

Paulo Edmundo Vieira Marques

Professor, Historiador, Escritor Medievalista

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