Chovia forte no dia 29 de abril de 2015, quando saí do Hotel Diana, pela parte da manhã, em direção ao Museu de Cluny. Caminhando nem percebia o frio e as dificuldades climáticas. Olhava para todos os lados admirando Saint German e Saint Jacques, maravilhosas e cativantes bulevares. Paris é mais bonita chovendo, ahhh, dizendo melhor; é bonita de qualquer jeito. Bem, talvez o dia cinzento contrastava com a minha enorme expectativa com relação ao magnífico prédio que iria adentrar. A cidade é repleta de museus. De arte, de ciências, históricos, da música, da moda, de todas as atividades humanas. Alguns atendem a interesses muito localizados, outros são imperdíveis. Entre estes está o Museu da Idade Média, mais conhecido como Museu de Cluny. Fica na região da Sorbonne, Quartier Latin, em um prédio construído no século XV por ordem de Jacques D’Amboise, abade de Cluny. A construção do prédio atendia a necessidades de hospedagem dos monges de Cluny*, que desde o advento da Universidade de Paris no século XIII mantinham um Colégio naquela região e até então ocupavam uma hospedaria modesta. A nova hospedaria recebeu o nome de Hotel de Cluny e além dos professores, noviços, abades, hospedou visitantes ilustres durante o período em que foi usada com a função de hospedagem. Sítio arqueológico único no coração de Paris, o Museu de Cluny testemunha da época romana, com as suas termas galo-romanas datadas do século I antes de Cristo e das suas duas salas com pé direito de 15 metros: o caldário, o cômodo aquecido e o cômodo refrigerado. Ao lado, outra maravilha arquitetônica: o casarão histórico dos abades de Cluny, datado do século XV. Construído em estile gótico, trata-se de uma residência excepcional, com as suas ricas fachadas esculpidas e o seu pátio interno. A capela e os jardins do local contribuem para dar um charme todo especial ao lugar, oferecendo aos visitantes que por ali caminham a tranquilidade e uma bela área verde em pleno centro de Paris.
No local escolhido para o Hotel de Cluny existiam restos de um antigo edifício romano, as Termas do Norte de Lutécia, cidade construída no século I na margem esquerda do Rio Sena. No século IV, para se defender das invasões de povos germânicos, os romanos construíram uma nova cidade na Ilha da Cité, que foi murada. As Termas do Norte foram abandonadas e perderam sua função.
O prédio do Hotel de Cluny foi construído mantendo partes das antigas termas e esta é uma das atrações para o visitante. O prédio do século XV é um raro exemplar da arquitetura residencial da época, e no mesmo local se encontram uma conservada sala de banho romana do século I, e restos de outras duas salas de banhos, estas na parte externa do prédio.
O Hotel foi confiscado pelo governo revolucionário em 1793 e passou a ser patrimônio do Governo francês. Foi arrendado em 1833 para Alexandre du Sommerard, colecionador de arte medieval, que ali instalou sua coleção e a ampliou. Após a morte de Du Sommerard o governo francês adquiriu a coleção e criou o Museu. A coleção inicial foi sendo completada com peças trazidas de vários locais e hoje é possivelmente o maior acervo de arte medieval no mundo.
O Museu tem as dimensões certas para uma visita completa, sem levar o visitante à exaustão. A coleção é uma ampla amostragem de 15 séculos de arte, inclui esculturas e peças do período galo romano e passa pelos períodos românico e gótico. Uma das peças de grande valor histórico é o Pilar dos Nautas, coluna decorada do século I encontrada em escavações realizadas no século XVIII na Catedral de Notre Dame. A coluna, dedicada ao Imperador Tibério, foi elaborada por galo romanos em honra de Júpiter e representa tanto divindades romanas quanto celtas. É um documento em pedra da convivência entre o culto celta dos antigos gauleses e o culto romano. Também documenta a existência de um local de culto gaulês onde hoje se situa a Catedral. O acervo do museu incorpora muitos trabalhos em mármore e em marfim, vitrais medievais, pinturas de diferentes épocas da Idade Média e um grande conjunto de tapeçarias, com destaque para uma série de tapeçarias do século XV, A Dama e o Unicórnio. São seis tapeçarias com a representação de uma dama com um leão e um unicórnio, e uma aia em algumas das cenas. Cinco das tapeçarias representam os sentidos: o tato, o paladar, o olfato, a audição e a visão. Uma sexta tapeçaria tem a presença de todos os personagens e uma barraca com a inscrição “Mon Seul Desir”. Essa tapeçaria deu origem a uma vasta literatura interpretativa do significado da cena e da inscrição “Meu único desejo” e pode-se dizer, sem qualquer dúvida, que as tapeçarias estão entre as mais famosas do mundo. Outro ponto a ser destacado é a exposição de vitrais. São fragmentos montados de forma que a pessoa possa observar de perto os detalhes das obras. Isto é impossível nas catedrais pela distância entre o observador e os vitrais.
Como espaço para um relaxamento depois da visita às coleções do Museu existe um jardim com área de cinco mil metros quadrados. O jardim é medieval no sentido de projeto, mas sua criação é quase do século XXI. Foi construído e plantado com base em pesquisas especializadas sobre estruturas, plantas ornamentais e medicinais da época. Uma das fontes está nas tapeçarias da Dama e o Unicórnio, que mostram plantas que foram introduzidas no jardim, concluído no ano 2000. É a chave de ouro da visita ao Museu. O tempo parou para mim.
Não conseguia sair daquele espaço maravilhoso. Chorava, enxugava as lágrimas, recompunha-me e continuava a admirar aquela beleza medieval preservada. Voltava a chorar, estava na hora de ir embora. Cluny, jamais te esquecerei. Distanciando-me meu coração se apequenava, mas enfim, tenho certeza, voltarei.
*A partir do século X e até ao século XII, o mosteiro de Cluny celebrizou-se pela influência moralizadora de seus membros no seio da Igreja Católica, movimento que ficou conhecido como Reforma de Cluny. Juntamente com os movimentos reformistas liderados por São Bento de Aniane, pela Ordem dos Cartuxos e pelos monges da Ordem de Cister, conseguiram conter parte do relaxamento de costumes que havia invadido a vida monástica e eclesiástica, na Europa, à época, reflexo da intromissão da política e suas manipulações no seio da fé.
Paulo Edmundo Vieira Marques – Professor, Historiador, Escritor Medievalista
Este texto eu dedico a minha querida amiga Ana Laura Bandeira Lins Lunardelli, incentivadora e participante dos meus estudos e pesquisas.
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